

Reflexões sobre o processo de criação de SONS DA METAMORFOSE
Criações em metamorfose.
É possível apreciar o conteúdo de um trabalho em “modo festa”?
Podemos dançar ao som de entrevistas ou reflexões faladas?
Como seria um documento sonoro-musical?
Metamorfosear, transformar, transdisciplinarizar conteúdos que são distintos mas trafegam pelo mesmo meio: entrevistas - em áudio - e música.
Com estas perguntas deu-se o início ao álbum musical “Sons da Metamorfose”.
Definimos o álbum Sons da Metamorfose como um mergulho no Bairro dos Anjos - Lisboa, através de uma criação sonoro-poética com base em entrevistas com comerciantes locais dentro de um projeto de antropologia com crianças.
A partir da seleção de trechos das entrevistas, foi criado uma obra musical com dez temas onde a música original nos apresenta outra apropriação estética e de sentidos para as entrevistas e reflexões levantadas neste projeto, metamorfoseando um acontecimento e fazendo com que seu eco chegue às pessoas por mais um olhar.
O convite feito por Kitti Baracsi, soou mesmo como um desafio intrigante. Fazer uma produção sonora com trechos de entrevistas, porém com um fator a ser considerado: apresentar o trabalho às pessoas em um encontro, quase numa festa, dentro da programação do festival Bairro em Festa 2023.
Festa, música, dança, sempre possível de estarem ligadas. Entrevistas, temas, conceitos, opiniões, outras coisas possíveis de estarem juntas. E como seria o elo entre tudo isso?
Canções prescindem de cantores, de letras, geralmente dentro de padrões métricos, estilísticos e melodias onde a palavra torna-se música. Como fazer canções com entrevistas para mergulharmos no bairro durante uma festa?
Os áudios eram remanescentes das entrevistas feitas por crianças do 4o ano no âmbito do projeto Pequena Oficina de Antropologia foi realizado numa parceria entre o Agrupamento de Escolas Nuno Gonçalves e CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia - nos anos de 2021/2022, criado e dinamizado por Giulia Cavallo, Kitti Baracsi e Micol Brazzabeni.
Para a criação sonora, Kitti e Micol selecionaram trechos das entrevistas divididos em grupos: MUDOU, PESSOAS, SENTIRES. Então, a metamorfose deu-se logo ao início do trabalho.
Os áudios foram ouvidos com atenção, papel e caneta, para tirar notas sobre quaisquer ideias.
Desta primeira audição, imersa numa tempestade de ideias, surgiram possíveis temáticas.
Com esse ouvido/olhar os trechos de entrevistas foram escutados outra vez, só que agora eram recortados, separados por temas e transcritos. Desta etapa já era possível ver o caminho para as dez composições.
A riqueza do material sonoro trouxe a possibilidade de uma mesma fala estar presente em diferentes contextos e fazer parte de vários discursos, o que proporcionou grande margem de criação dentro das temáticas escolhidas.
Com o material base arrumado, é hora de começar a criar. Como? Estabelecer uma linha dramatúrgica ou narrativa? Fazer um texto com os recortes em um fundo musical? Criar um sentido estrito, ou brincar com frases soltas? Como o material sonoro das vozes podem conduzir uma criação musical?
Nessa última pergunta, o trabalho ganhou um direcionamento. Os recortes por temas foram ouvidos algumas vezes e dali foi possível encontrar alguns parâmetros musicais em comum ou aproximados naquele conjunto de falas, andamentos e tonalidades possíveis para as canções.
Com guitarra nas mãos e algumas palavras colocadas dentro do andamento escolhido, às vezes a partir do próprio ritmo em que as palavras eram ditas, notava-se um convite ao estilo das canções, assim como o conteúdo das falas também influencia nessa etapa da criação.
A exemplo de uma faixa específica, quando os comerciantes falam das partes menos boas do bairro, a batida pop lenta transforma-se num rap em tom menor e depois quando outras opiniões se juntam, a música passa a ter elementos de fusão de jazz, rap e pop em tom maior e dançante.
Com um universo de falas em um mesmo tema, andamento e tonalidade, começa a gravação/criação. Nada perto dos moldes tradicionais de musicar uma letra e realizar uma pré produção musical onde se levanta o corpo da música e suas necessidades para depois gravar em estúdio.
Este processo deu-se de forma orgânica a ouvir as falas e criar parte a parte da música. Por isso, a maioria das músicas não estão nas formas tradicionais das canções com introdução, exposição, refrão e repetições. Isto torna a criação e escuta mais exigentes, porém mais diversa.
As bases harmônicas e rítmicas foram criadas parte a parte, e as falas encaixadas ali.
Como essas bases foram pensadas considerando um andamento e tonalidade da fala em comum, não foram necessários recursos de edição para modificar tempo ou afinação das vozes.
Nesta etapa, já tendo uma música simples feita com algum instrumento harmônico, rítmico e vozes, chega a hora de dar corpo e mais identidade ao som. Foram gravadas guitarras, baixo, pianos, órgão, clavicórdio, bateria, percussão, beats, instrumentos de sopro, de cordas, mistura e finalização.
Em sua totalidade, o álbum Sons da Metamorfose tem 10 músicas em diferentes estilos:
“Viemos fazer uma entrevista” (Blues Rock), “Perguntas” (Disco Music), “O Bairro” (Rap Fusion), “As pessoas” (Funk/groove), “Lugares” (World Music), “Números” (Rancho folclórico), “Comidas” (Punk Rock), “O que vejo” (Dance), “O que ouço” (Balada pop), “Adeus, tchau!” (Garage Rock).
Na sua criação, falas isoladas, recortadas do contexto original, separadas por temas foram usadas para compor um discurso. Desta forma, a narrativa foi criada como um puzzle de muitas vozes, amparadas pelo som da música que as unia num contexto, e que instrumentalmente também deseja comunicar algo.
Muitas das vozes pareciam bastante musicais na cadência da forma como foram ditas. Algumas suposições foram feitas: Será que em frente a um gravador as pessoas falam com mais cautela? Será que ao serem interrogadas o pensar/falar das crianças confere a elas uma característica mais lenta e reticente na voz? Será que ao serem entrevistados por crianças, os adultos despem-se da sua seriedade e falam mais lento, com diferentes dinâmicas, ritmos e melodias nas palavras?
Não tem respostas, perguntas que ficam e que compõem o trabalho.
Nesses temas apresentados em diferentes vozes e sons, está presente sempre o humor e crítica. Recursos simples como a repetição de falas em pontos específicos da música reforçam essas dimensões mas também dão a noção de refrão, coro, reforço do tema e mote para alguma reflexão.
A diversidade de temas, vozes, opiniões, sonoridades e atmosferas foram elaboradas considerando que serão ouvidas por pessoas de muitas idades e cada uma aprofunda como pode a sua reflexão sobre as músicas.
Talvez enquanto dançam, as pessoas podem estar ouvindo com o corpo, e durante aquela brincadeira com o corpo, com o som, com os outros, serem atravessadas pelo bairro em que vive, ou visita, ou conhece.
Uma visita à memória a partir de pessoas falando coisas comuns a muitas realidades.
Uma dimensão particular e afetiva que atravessa a todos de alguma maneira e suscita certa identificação e pertencimento àquilo que se ouve.
Nessa metamorfose viva que são conceitos e modos de se fazer arte, foi criado alguma coisa como uma Música Documental, algo que lembra uma brincadeira de juntar peças, ou uma obra de Spoken Word Music, ou simplesmente músicas para se ouvir com o corpo todo e não dissociar desejo, razão e emoção.
Deste projeto ficam algumas perguntas e possíveis respostas que foram aprofundadas ou descobertas enquanto foi feito, e enquanto é apreciado. Nesse desdobramento de uma oficina de antropologia com crianças, resultou em como entrevistas estruturadas podem ganhar dimensões interpretativas abertas sendo colocadas por outra perspectiva, nesta em questão, músicas que evocam o trabalho de fundo do projeto, as pessoas, os lugares, e como elas vivem e se relacionam ali.
Assim, iniciativas como essa, do álbum, que foi um desdobramento da pesquisa, pode ser uma forma de ampliar o que foi proposto, dar continuidade das ideias no tempo, propor algo de leitura aberta que pode ser fruído em diferentes camadas e contextos.
O conjunto da obra, 10 faixas de diferentes estilos, apresenta abundante diversidade musical e riqueza de detalhes, que instiga a pessoa a ouvir… sons peculiares, perspectivas inusitadas. Uma música convida ao prazer em descobrir sons, pessoas e lugares.